Ao longo da história, a mulher foi confinada, silenciada e representada
pelo olhar masculino. A luta pelo reconhecimento como membro so‑
cial e intelectual percorreu um longo e conflituoso caminho e, apenas
depois de séculos de submissão e silenciamento físico e intelectual, a mulher
conquistou a possibilidade de falar de si mesma.
Com a conquista de direitos sociais e políticos, a mulher brasileira iniciou o
rompimento das barreiras que impediam sua expressão intelectual, o que
favoreceu a produção artística de sua história. Existiria uma maneira feminina de fazer/escrever a sua história, radicalmente diferente da masculina?
E, ainda, existiria uma memória especificamente feminina? É um questiona‑
mento de dupla resposta.
De um lado, sim, porque se entende que há um
modo de interrogação próprio do olhar feminino, um ponto de vista específico
das mulheres ao abordar seu passado, uma proposta de releitura da história
no feminino. Por outro lado, não, em se considerando o método e a forma de
trabalhar e procurar as fontes.
A análise de letras de músicas escritas por mulheres recorta, no universo
discursivo, um “conjunto de discursos que interagem num dado momento”
(Maingueneau, 1996, p. 15), um lugar de fala que nos traz textos e imagens
como objetos sociais e históricos, elaborados no social segundo códigos e
significados pré‑construídos; por outro lado, são, também, produtores/ressemantizadores das representações instituidoras da socialidade.
A história das letras de músicas escritas por mulheres brasileiras está relacionada à transformação da condição social feminina.
As letras de músicas
não só interpretadas, mas também escritas por mulheres, são resultado de
um processo de conscientização da sua situação social.
Para Margareth Rago (1998), as mulheres trazem uma experiência histórica
e cultural diferenciada da masculina, ao menos até o presente, uma experiência que várias já classificaram como das margens, da construção miúda,
da gestão do detalhe, que se expressa na busca de uma nova linguagem ou
na produção de um contra discurso, é inegável que uma profunda mutação
vem se processando também na produção do conhecimento científico.
As teóricas feministas propõem não apenas que o sujeito deixe de ser toma‑
do como ponto de partida, mas que seja considerado dinamicamente como
efeito das determinações culturais, inserido em um campo de complexas
relações sociais, sexuais e étnicas. Portanto, em se considerando os “estudos da mulher”, essa não deveria ser pensada como uma essência biológica predeterminada, anterior à história, mas como uma identidade construída
social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas
disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes.
É com esse pensamento que as mulheres/escritoras/compositoras passaram
a relatar seus desejos, seu ponto de vista sobre a sociedade e sobre sua própria condição social e psicológica.
Por meio de uma linguagem rica em metáforas, a representação da identidade feminina ganhou lugar nas entrelinhas
dos textos literários e também nas letras de músicas.
A rebeldia e a busca por igualdade de direitos e de decisões da juventude da
década de 60 (séc. XX) marcam também uma mudança no comportamento
da mulher, que passa a assumir sua voz num discurso de liberdade e auto‑
afirmação presente em diferentes manifestações culturais. Entre os fatores
que promovem uma ruptura com relação à identidade feminina traçada até
então, pode‑se destacar o impacto do movimento feminista, que surgiu na
década de 60 (séc. XX), e o crescimento do rock, não apenas como gênero
musical, mas também como movimento social e cultural que contestava a organização social e política, a sexualidade, os costumes, a moral e a estética.
Nas letras de músicas escritas por mulheres, elas registram, por meio de
uma voz singular, de linguagem e temática próprias, em textos repletos de
reflexão, questionamentos existenciais, políticos e filosóficos que são construídos historicamente.
Um dos temas predominantes na música de autoria feminina é a representação da busca de uma identidade autônoma, ou a representação do conflito
de identidade, própria do sujeito pós‑moderno. Diante disso, ao analisar as
letras de canções compostas por mulheres, busca‑se observar como ocorre
a representação da identidade da mulher na música de autoria feminina e
como as mudanças culturais influenciam nessa representação.
Dessa forma, de acordo com a noção de “obra aberta”, de Umberto Eco, com as discussões sobre a identidade na pós‑modernidade, de Stuart Hall e Zigmunt
Bauman, objetiva‑se analisar como, na letra da canção “Cor de rosa‑choque”
da cantora e compositora Rita Lee, é representada a identidade da mulher
que se constitui como um sujeito fragmentado e multifacetado.
Mulher “Cor de rosa‑choque”:
um sujeito multifacetado
O campo midiático vem sendo objeto de um diferente olhar, nas últimas décadas. Sob o impacto dos chamados Estudos Culturais, observa‑se que os
sujeitos, expostos à ação desses meios, produzem estratégias de oposição
e resistência que complexificam e problematizam os significados das produções veiculadas pela mídia.
Assim, os meios de comunicação de massa
passam a representar um outro espaço que se oferece para a atividade de
contestação e a produção de sujeitos críticos.
Se os gêneros musicais são sistemas de significação sócio-discursivos, como
afirma Walser, então os indivíduos podem identificar‑se com tais discursos,
e, muitas vezes, isso vem acompanhado pela adoção, pelo sujeito, de com‑
portamentos linguísticos associados a esses gêneros. Isso quer dizer que,
sendo um discurso, o gênero musical conecta a subjetividade aos processos
sócio‑históricos.
Dessa maneira, gêneros musicais conferem identidades.
Detalhes musicais passam a significar atitudes e crenças/ideologias que
tanto congregam comunidades de sujeitos identificados com os valores do
grupo, como também mantêm afastados aqueles que adotam uma atitude
de rejeição em relação a tais valores.
No fim nos anos 60 (séc. XX), após o Golpe Militar no Brasil, o Tropicalismo
foi o auge das manifestações contracultura no País.
Rita Lee foi uma das
mulheres que participou desse movimento musical de crítica e discussão do
novo, interpretando, com o seu grupo de rock “Os Mutantes”, a canção Panis
et Circensis, que marcou a representação de um sujeito antropofágico e relativizado no disco “Tropicália”, lançado em 1968.
Com “Os Mutantes”, Rita Lee participou também das transformações es‑
téticas da música brasileira com sua voz e as performances sempre ousadas e o visual provocativo que acompanharam as primeiras utilizações
de guitarras elétricas nos novos riffs do rock nacional.
“Os procedimentos
concretos e a antropofagia influenciaram o tropicalismo na concepção de
cultura como um conflito de visões distintas, no humor corrosivo e irônico,
nos jogos de palavras e na atitude em relação aos valores estabelecidos.”
(Dantas, 2009, p. 77).
O tom obscuro e debochado das letras, o uso de estrangeirismos, a mistura de ritmos e a fragmentação do discurso passaram a ser características
de denúncia e de resistência.
O hibridismo e a não unificação do gênero
musical que se consolidava refletiam também as características das novas identidades e posições do sujeito feminino na sociedade.
Conforme cita
Dantas,
para Lopes, o sujeito tropicalista difere dos outros sujeitos principalmente por não
propor um posicionamento rígido frente às questões levantadas, tendo como uma
das suas principais características a ironia. “Ele é um sujeito fundamentalmente,
constitutivamente negativo, porque seu discurso é um anti-discurso do outro. [...] Ao
terminar de demolir o discurso do outro, o tropicalista termina seu próprio discurso”. (Lopes, 1999: 196). Para poder constituir‑se enquanto sujeito de seu projeto,
o tropicalista parte da desqualificação dos projetos das outras correntes musicais.
De forma que, ao terminar de demolir o discurso do outro, o tropicalista termina o
seu próprio discurso. (Dantas, 2009, p. 797).
As características estéticas e culturais de rompimento e reelaboração desse contexto no qual teve início a carreira musical de Rita Lee permaneceram constantes na sua produção artística, mesmo depois de sair de “Os
Mutantes” e formar o “Tuti Fruti” em 1973 e, posteriormente, na sua carreira
solo a partir de 1980.
Na música “Cor de rosa‑choque”, lançada em parceria com Roberto de
Carvalho, em 1982, o sujeito feminino é representado como fundamental‑
mente paradoxal. A expressão que dá nome à canção e é repetida várias
vezes no refrão, indica o tom irônico e de ruptura desse discurso e indica um
sujeito multifacetado.
A simbologia da cor rosa, culturalmente conhecida como uma cor feminina e
delicada, é subvertida ao ser denominada cor de rosa‑choque. Choque reme‑
te ao impacto, à força, à quebra, a mudanças radicais. A mulher representa‑
da nessa canção é cor de rosa‑choque: essencialmente feminina e constitutivamente forte e transgressora.
Eva é o nome próprio escolhido para designar uma mulher de duas faces:
“Eva significa a sensibilidade do ser humano e seu elemento irracional.”
(Chevalier, 2005, p. 410). A Eva, de Rita Lee, não é a representação da sub‑
missão da mulher ao homem. Ela é bela, frágil, delicada; mas também é fera,
forte e dissimulada. Seu sorriso de quem nada quer é sua arma, seu ardil na
luta por seus direitos e desejos.
Nas duas faces de Eva
A bela e a fera
Um certo sorriso
De quem nada quer...
Em “A dominação masculina”, Pierre Bourdieu, ao falar sobre a economia dos
bens simbólicos e estratégias de reprodução, afirma que: excluídas do universo das coisas sérias, dos assuntos públicos e mais especial‑
mente dos econômicos, as mulheres ficaram durante muito tempo confinadas
ao universo doméstico e às atividades associadas à reprodução biológica e social da descendência; atividades (principalmente maternas) que, mesmo quando aparentemente reconhecidas e por vezes ritualmente celebradas, só o são
realmente enquanto permanecem subordinadas às atividades de produção, as
únicas que recebem uma verdadeira sanção econômica e social, e organizadas
em relação aos interesses materiais e simbólicos da descendência, isto é, dos
homens. (2011, p. 116).
Na música em análise, a paráfrase da passagem bíblica que diz: “Nem só
de pão vive o homem” rompe com a imagem da mulher objeto sexual ou de
reprodutora. Mas, no verso Nem só de cama vive a mulher, a conjunção nem
não exclui a proposição que inicia. Ao contrário, adiciona, acrescenta outras
necessidades e compromissos ao mesmo sujeito, o que representa a identidade da mulher da modernidade que acumula várias atividades além das
domésticas, familiares e sexuais.
Sexo frágil
Não foge à luta
E nem só de cama
Vive a mulher...
A intensidade e a particularidade femininas, o sofrimento biológica e socialmente instaurado e emocionalmente marcado na crise de identidade podem ser
observados na ironia ao se referir a clichês que identificam a mulher cultural‑
mente.
Mulher é bicho esquisito
Todo mês sangra
Um sexto sentido
Maior que a razão.
Ao estabelecer intertextualidade com o conto de fadas “A gata borralheira”,
Rita Lee subverte a imagem da idealizada princesa. Sem sapatinhos de cris‑
tal, sem luxo gratuito, sem fada‑madrinha.
Gata borralheira
Você é princesa
Dondoca é uma espécie
Em extinção...
O verso que finaliza a estrofe retoma a característica de instabilidade, de mu‑
dança e liquidez das identidades na pós‑modernidade. A extinção da mulher
dondoca, daquela que vive normalmente à custa e à sombra de um homem,
indica o rompimento com velhas identidades, com os valores historicamente
estabelecidos e perpetuados pela cultura. Não há mais espaço para o sujeito
passivo.
Conclusão
O sujeito da contemporaneidade busca novas maneiras de identificar‑se na
sociedade em que vive, e as várias transformações culturais que sofreu ao
longo dos anos são também refletidas no caráter híbrido das identidades na
pós‑modernidade.
Considerando que as letras de músicas de autoria feminina recebem as marcas históricas, culturais e sociais da condição da mulher que busca representar metaforicamente a sua subjetividade e refletir sobre sua identidade,
buscou‑se realizar uma análise sobre a representação da identidade feminina nas letras de rock considerando o apelo à liberdade e à ruptura.
Ao analisar a letra da canção “Cor de rosa‑choque”, de Rita Lee, foi possível
observar a representação da identidade da mulher que, inserida nesse contínuo processo de transformação cultural, não pode mais ser vista como um
sujeito único, homogêneo, pleno e predeterminado por forças sociais, como
era o sujeito do Iluminismo.
As inegáveis marcas históricas de submissão à dominação do pensamento
masculino ainda constituem a identidade feminina, mas, hoje, a mulher transita por diferentes papéis sociais e para cada posição assumida há também
uma nova possibilidade de identificar‑se. Dessa forma, o sujeito feminino re‑
presentado nas letras de músicas compostas por mulheres – neste trabalho
tomada como exemplo a música da cantora Rita Lee – é multifacetado e tem
como principal característica o caráter fragmentado das identidades contemporâneas.
Fonte: Leia mais aqui
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/viewFile/1809/1472
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