"Tudo começou em Nova Iguaçu (RJ), onde eu e o Da Gama fizemos o ginásio juntos, ambos filhos de operários. Tornei-me baterista de um grupo gospel, o Novo Tempo, com o Da Gama e o Bino. Participamos de festivais estudantis. A gente nunca ganhava, mas recebia elogios. O Bernardo entrou em 85. Tocamos num evento de reggae promovido pela UNE no Rio, em 87. Ouvíamos direto o programa 'Batmacumba', da Fluminense FM, e seu apresentador, o Nelson Meirelles, virou uma espécie de nosso pai e tutor musical.
A BBC de Londres fez um especial sobre a Baixada Fluminense e nos descobriu. Pintaram shows fora do Rio. Gravamos uma demo que caiu na mão do Ricardo Barreto (Blitz) e do poeta Bernardo Vilhena. Eles a apresentaram à Sony, que nos contratou em 90. E, logo no primeiro LP, tivemos a participação de Jimmy Cliff! Um sonho real!"
O Cidade Negra, uma das principais bandas do Reggae Nacional, lança seu mais novo álbum intitulado "Perto de Deus", que vem dando o que falar. A banda, natural de Belford Roxo, voltou-se às próprias raízes! Foi todo um trabalho de arranjos, mixagem e produção nitidamente mais "roots".
Com entrevista programada para às 18:00 do último dia 20, fomos à cobertura do hotel Imperial Hall em São Paulo, onde a banda realizava pequenas entrevistas para vários veículos de comunicação. Logo no início, Da Gama, guitarrista da banda, não conteve a surpresa de ver a equipe Surforeggae, já que temos uma forte parceria com um de seus trabalhos paralelos, o programa de rádio "Cidade do Reggae". Sem mais delongas, vamos à entrevista.
Obs.: As palavras com asterísco, tem seu significado ao final da página.
A ENTREVISTA
Surforeggae: Qual o motivo que levou o Cidade Negra mixar o novo álbum na Jamaica?
Da Gama: Nosso primeiro contato com a Jamaica foi através de shows e clipe, e vimos a necessidade de estreitar os laços com produtores jamaicanos a fim de poder ter aquele toque especial ao nosso projeto. É uma honra poder trabalhar com grandes nomes como Colin "Bulby" York*, um dos produtores da última fase da Studio One*, que também foi dj, aliás já é tradicional na Jamaica grandes djs se tornarem grandes produtores. Para o Cidade Negra, é muito evidente que devemos nos juntar com os melhores do Reggae, no berço do Reggae, etc, que toda essa experiência iria se refletir em nosso trabalho. Esse é um primeiro passo para um disco feito 100% na Jamaica.
Lazão: Com certeza, já é de sangue a união dos elementos no decorrer da música, em seu desenvolvimento enfim. A introdução seca de bateria, o silêncio... a entrada da linha de baixo, os teclados, ou seja, toda uma técnica e "feeling" que vem sendo exploradas à vários anos.
Da Gama: Não só é importante para nós esse estreitamento, mas também para o próprio jamaicano, que estará respirando os ares da MPB, que são naturais do Cidade Negra. Pepeu Gomes, Luiz Melodia, Gilberto Gil, enfim, a mistura de escolas só faz fortalecer esse intercâmbio cultural. E o Reggae no Brasil, como vocês do Surforeggae sabem bem, está crescendo muito, e mesmo não aparecendo nas grandes mídias como xuxa ou Faustão, tem grande força em um mercado paralelo alternativo... a cena independente.
Surforeggae: De quem foi a idéia de convidar Anthony B.* para participar da faixa "Perto de Deus"?
Bino Farias: Na verdade, nossa primeira escolha foi Buju Banton, mas ele estava fora da Jamaica, viajando, e Anthony B. acabou sendo uma grande escolha, já que é pastor de igreja e a música ter um cunho religioso.
Da Gama: Certamente a mistura funcionou muito bem, não só pela experiência de Anthony, mas pela música ajudar nessa parte ideológica.
Surforeggae: A música jamaicana, apesar de rica, é pouco divulgada mundialmente. Aqui no Brasil, vocês tiveram alguma dificuldade em produzir um álbum com uma pegada Reggae mais evidente?
Toni Garrido: Pela versatilidade da informação hoje em dia, todos estão mais antenados acabando por ter acesso rápido aos lançamentos, as novidades, sem depender muito da grande mídia, vocês do Surforeggae sabem e trabalham com isso. A internet tornou-se uma grande ferramenta para tornar isso possível, onde o reggae pode trafegar com mais autoridade entre pessoas que gostam do estilo e se interagem. Como estávamos na Jamaica, não houve dificuldade nenhuma, muito pelo contrário. Lá você encontra os melhores produtores, as batidas, os elementos do reggae... cara... aquilo é um oásis, rs.
Surforeggae: Qual a visão de vocês sobre o Rastafarianismo? Marcus Garvey* e o Leão da Tribo de Judah* foram citados na música "Homem que faz a guerra" com o rapper, Rappin Hood.
Da Gama: Grande Rappin Hood... muita gente vai ficar surpresa com a relação dele com o reggae. É um cara que conhece reggae há muito tempo, fã de Bob MArley, e citou Marcus Garvey com muita propriedade. Em seu primeiro disco, ele já falava de uma união Reggae e Rap, e sempre relevou sua admiração pela banda. Foi legal a citação de Marcus Garvey, pois nos aproximamos mais de nossas referências. Realmente uma grande sacada.
Toni Garrido: Apesar das citações de rastafarianismo, ninguém aqui é rastafari... mas temos claro como referência. Ser ou não ser rasta não tem nada a ver com sua roupa, cabelo, e sim com atitude e seu jeito de ver e viver a vida. Nós não fechamos com o Rastafarianismo, porque o Da Gama é mais pro lado batista, o Bino é mais evangélico, Lazão e eu mais pro lado espiritual, enfim, não somos seguidores da ideologia religiosamente falando. O lance legal do rastafarianismo é a propagação ideológica, antropológica, o orgulho do negro em usar seu cabelo comprido, o fato de ficar sempre ligado às suas origens, e o reggae é instrumento desse movimento, que visa a tranquilidade, a justiça, a paz.
Bino Farias: E tem também a questão social, a valorização do negro... a auto estima do povo negro.
Da Gama: Marcus Garvey está bem enquadrado nisso, pois é um pastor muito politizado, que lutava sempre pelas questões sociais, meio que um Lula, um líder sindical, que elevou a luta social com a questão espiritual, indo muito além da questão filosófica.
Toni Garrido: Há uma questão de que todo negro deveria, pelo menos uma vez, ir à Africa, a terra-mãe. A África foi muito invadida pelos povos europeus e há uma necessidade de que a olhem no sentido de proteção, pois sem essa consciência ela acabará sendo extinta. Os negros com dinheiro na África e fora dela, tinham que ajudar mais nesse fortalecimento e preservação. Na Etiópia, o imperador Haile Selassié resistiu às invasões, lutou e pagou com mais ataques políticos e físicos.
Da Gama: E aquela foto é incrível... uma grande resposta aos ataques, como se dissesse: "Estamos aqui, pode vir!".
Toni Garrido: É uma foto horrível, provocada por outro fato horrível. Não foi uma resposta verdadeiramente neo-pacifista.
Surforeggae: Lazão, como foi gravar com Sérgio Yazbek* a "Concret Jungle" de Bob Marley? Algum motivo especial?
Lazão: Essa música faz parte da história do cidade Negra, pois a ouvíamos incessantemente, e seu conteúdo nos dizia muito. Para quem não sabe, não fizemos uma versão, e sim uma tradução literária, até porque não tínhamos a mínima pretensão de dizer algo tão mais importante do que Bob Marley citou.
Renato Surforeggae: E aconteceu também com "The Harder They Come" de Jimmy Cliff, não? De certa forma a música ficou mais conhecida com o próprio Cidade Negra.
Lazão: Certamente.
Surforeggae: Gostaria que cada um de vocês falassem um pouco sobre o álbum "Perto de Deus".
Bino Farias: Uma realização profissional. Pela mixagem e produção jamaicana, o resultado final, enfim... feito com as pessoas certas e na hora certa.
Da Gama: Realmente um projeto, como disse o Bino, que conseguimos surpreender reunindo pessoas bacanas. Paul Ralphes* é genial como produtor e dj, com suas idéias, as sacadas de dub, que deram uma sonoridade execelente ao trabalho, juntamente com Anthony B.*, Rappin Hood, Sérgio Yazbek, etc.
Surforeggae: Como vocês Vêem a cena Reggae Nacional?
Da Gama: Podemos dizer que difundimos o ritmo, mas somos "filhos" de uma galera que já vem fazendo a coisa acontecer à anos. Edson Gomes, Gilberto Gil, Luiz Wagner, Luiz Melodia, que foi o primeiro a usar dreadlocks de verdade no Brasil, enfim, uma galera que realmente difundiu o estilo à se tornar o que é hoje. A cena reggae atual está cada vez mais forte, em todo país, porém é preciso uma conscientização das gravadoras e produtores, que existe SIM um mercado em portencial para o Reggae, até para que eles dêem suporte para os novos talentos.
Surforeggae: O que vocês andam escutando de reggae nacional?
Toni Garrido: Existe duas que eu adoro... uma delas é a Banda Grave do Rio de Janeiro, e a outra é a Enganjaduz, que tem uma pegada de Raggamuffin, hip-hop...
Rangel Surforeggae: Inclusive eles estarão em um evento nosso...
Toni Garrido: Bem legal... Bem legal...
Da Gama: Célia Sampaio, Walking Lions, Dagô Miranda, que tem um disco de uma sonoridade fantástica...
Lazão: Vell Rangel...
Surforeggae: A internet vêm se tornando uma forte arma de divulgação de pequenas bandas. Como as mesmas crescem desproporcionalmente, esquecem de fundamentos básicos como uma boa gravação, ensaios, etc. O que vocês acham disso?
Toni Garrido: Tem que TOCAR pra depois DIVULGAR! Tem banda que toca pouco mas divulga muito... como a internet é cheia de possibilidades, lá vai um garoto que manja bem de computador, pluga a guitarrinha, grava no "ProTools" um CD, sai distribuindo, e quando se lança ao vivo, tá "durona", sem preparo em palco... e existem muitos preguiçosos, não querem trabalhar a música, fazem o próprio som como se estivessem gravando um "jingle", não ensaia... a versatilidade da internet ilude muitos aventureiros da música.
Da Gama: Concordo, mas também tem a questão de que há realmente uma facilidade de marcar shows, assim a banda vai se exercitando, viajando, e se isso estiver aliado a um trabalho sério, com certeza existirá uma chance de que haja algum sucesso.
Surforeggae: Nós do Surforeggae agradecemos a atenção, até porque sabemos que são diversas entrevistas, e também agradecer a oportunidade de saber mais sobre o novo trabalho e a banda.
Toni Garrido: Foi um Prazer receber vocês...
Lazão: Pô, vou querer uma camiseta do Surforeggae, hein?
Renato Surforeggae: Eu mando para o Da Gama...
A partir daí Toni Garrido e Lazão começam a brincar, descontraindo ainda mais o ambiente. Esse contato mostra não só o profundo conhecimento e experiência do Cidade Negra no Reggae, mas também uma banda humilde que merece o respeito de todos.
CITAÇÕES:
Paul Ralphes: Ex-baixista inglês, dj e produtor.
Leão da Tribo de Judá: Leão conquistador da tribo de Judá, o salvador.
Haile Selassié I: Primeiro imperador da Etiópia.
Marcus Garvey: Líder do movimento negro nos EUA e na Jamaica no inicio do século.
Colin "Bulby" York: Famoso produtor da última fase da Studio One.
Studio One: Lendário híbrido de estúdio, gravadora e distribuidora na Jamaica.
Rastafarianismo: Movimento de resgate às raízes africanas, dos povos que migraram à força das contingências escravocratas.
Sérgio Yazbek: Gravou guitarras matadoras no cd do Polygamya, e atual guitarrista do Cidade Negra.
Anthony B.: Famoso DJ e produtor jamaicano.
FOTOS E INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Site Oficial: www.cidadenegra.com.br
Site da rádio Cidade do Reggae:www.radiocidade.fm
Fonte: Equipe Surforeggae
Marcos Antonio Lázaro, o Lazão, é baterista do Cidade Negra (Depoimento dado a Fabian Décio Chacur, free-lance para a Folha)
fonte
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/14/folhateen/12.html
http://www.surforeggae.com/noticias.asp?id=857&Tipo=entrevista